- Esses pretos
não têm direito ao salário hoje! Mas quem disse que os pretos tinham direitos?
Não lhes dou salário e falo com o meu advogado para ver se ele encontra uma
legalidade nisso. Os advogados sempre arranjam uma saída. Muito bem sei que não
existe uma relação directa entre o direito e a justiça. Mas quem inventou que
os pretos deveriam ter contratos? Esse só nos trouxe problemas. Tenho que fugir
brevemente. Mas primeiro mando a minha família e depois fujo eu. Eu sou homem e
vou tentar enfrentar esses pretos mas que não toquem na minha família.
O tio Guilherme assim o fez. Viajou com a família para Inhambane e
voltou sem ela. Da sua viagem trouxe tapioca, cocos, lanho, sura e bolinhos de
sura. É isso que identifica os manhembanes?
-
Meu Deus, tenho que suportar as exigências desses pretos. Quem lhes
ensinou a fazer e a interpretar as leis? Os contratos para o preto devem ser feitos
sem respeitar as leis laborais. As leis laborais devem funcionar apenas para
nós e manipulamo-las como quisermos para o nosso próprio benefício. Usamos o
nosso poder económico, social, político e cultural para dominar esses gajos.
Esses macacos não têm razão e exigem que eu lhes dê salário mensalmente? Isso
não tem cabimento! Eles assinaram conscientemente um contrato que dizia que receberiam
as suas remunerações um mês sim e um mês não e que durante o período de férias
não teriam salário. Esses pretos não pensam mesmo!
Murmurava dessa maneira o tio Guilherme sentado na poltrona virada
para a janela com vista ao Oceano Índico. O sol brilhava muito mais para o titio pois a vida corria-lhe muito bem. O sofrimento dos outros era como gotas de ouro que caiam sobre os seu peito inundado de todo o tipo de maldade e (in)justiça individual.
-
Bem, vou difundir uma informação segundo a qual eu saio daqui deste
lugar dentro de alguns anos. Mas, esses pés descalços não verão sequer a minha
sombra dentro de alguns dias. Que coisa magnífica! Quando meterem o caso no
tribunal, eu já não estarei cá.
Ria-se o tio Guilherme ao projectar os seus planos com vista ao
alcance do seu sucesso na fuga.
-
Abro a minha garrafa de champagne e dou umas dentadas nesse
delicioso queijo. Tudo isso é da minha terra. Que esses pretos fiquem na sua
desgraça. Mas também o preto foi sempre desgraçado! Não sou eu que os vou tirar
dessa! Eu devo, mas é, afundá-los cada vez mais na desgraça. A desgraça é a
casa deles. Se eles dela saírem, há sérios riscos de eles morrerem pois um
trabalho e um salário digno não fazem parte do seu habitat.

Neste momento não sabemos qual é o paradeiro do querido tio
Guilherme, mas sabe-se que ele não está no lugar onde devia – naquele lugar em
que ele veria o sol aos quadradinhos. Ele terá conseguido subornar até o Procurador
da República? Não se sabe. Sabe-se apenas que ele não está nas celas e nunca lá
esteve. Dizem que fugiu num carro da polícia, escoltado por duas motos que
exigiam, nas estradas, que os outros automobilistas cedessem passagem.
Assim fugiu o tio Guilhermito. E os pretões ficaram na desgraça
comendo as poeiras deixadas pela descolagem do avião que transportou o violador
das leis para a sua terra.
-
Esses pretos achavam que me
iam pegar mesmo?
Marcos SINATE